Cada momento histórico implica na evolução e desenvolvimento conceitual. Isso aconteceu, por exemplo, com o termo “Anão”. Se um dia se referia às pessoas de baixa estatura, hoje se tornou ofensivo por um avanço nas classificações. Pessoa com nanismo é o modo correto de referências às centenas de tipos de nanismo existentes.
No entanto, diferentemente da ridicularização que alguns fazem ao chamar alguém de “Anão”, defendo convictamente que autores clássicos usavam o termo “Anão” como referência a um grupo que era tido em alta estima na literatura fantástica. “Anão” não era uma ridicularização, mas o reconhecimento de uma “espécie ou raça” possuidora de várias características. Espécie ou raça, na literatura, normalmente chama a atenção para pessoas que possuem qualidades diferentes e, por vezes, maiores que as humanas, como por exemplo, poderes mágicos.
Os chamados “Anões”, se destacam nos escritos por sua coragem, perseverança, lealdade nas batalhas e personalidade forte. Na verdade, ai de quem tratasse os “anões” com desdém. Prontamente deveriam começar a temer por si…
“Duros como pedra” e leais
Começo falando sobre “Anões” em J.R.R. Tolkien. Condecorado pela Rainha Elizabeth II como Comendador na Ordem do Império Britânico, Tolkien é reconhecido como um dos maiores literatos e filólogos da história. Destacam-se, sobretudo, seus livros O Hobbit e Senhor dos Anéis.
Em seus livros, os personagens fantásticos chamam a atenção pela descrição detalhada da personalidade. E como não podia faltar, pessoas com nanismo, os chamados “Anões” também são descritos.
O aparecimento de um personagem importante ocorre quando Bilbo Bolseiro volta, em determinada ocasião, para conversar com Mago Gandalf, confundindo-se e notando que se tratava de outra pessoa. Bibo avistou um anão com uma barba azul enfiada em um cinto de ouro, com olhos brilhantes e com um capuz verde escuro. Não se tratava de um mago, era Dwalin, um anão guerreiro do Thorin e Companhia [1]. Esse grupo, integrado por treze anões, somados a Gandalf, o Hobbit e liderados por Thorin II, formava uma poderosa companhia de guerra para a recuperação do Reino Perdido dos Anões, que ficava na região da montanha solitária.
Após o encontro do Hobbit com Dwalin, os integrantes da companhia começam a encontrá-lo um a um, em sua casa. Uma “multidão”. Isso deixou Bilbo Bolseiro perplexo, possivelmente pensando em como iria alimentar tanta gente. Bilbo mal sabia, ainda, que os anões da companhia de Thorin se tornariam não apenas aliados, mas guerreiros fiéis, corajosos e, algumas vezes, mártires em suas lutas contra os Orcs. Cada qual com sua característica, humor e qualidades, eles iam de mineradores e guerreiros, até sábios conselheiros, como Balin, o líder [2].
Ainda na literatura de Tolkien, em seu livro Silmarillion há uma descrição da criação dos anões [3]. Trata-se do capítulo II, de Aulë e Yavanna. Os anões foram feitos por Aulë, o ferreiro e mestre artífice, na escuridão da Terra-média. Aulë os criou para que fossem seus filhos, e tivessem, exatamente por ser criação sua, força e obstinação. Diferentemente de caricaturas populares de ridicularização de pessoas com nanismo, Tolkien descreve a criação destas para serem fortes, amadas e ensinadas por Aulë, a tal ponto de terem um idioma próprio. A criação foi dos Sete Anões. O número sete é emblemático na literatura de Tolkien. Significa a vida, a ordem, a completude e a evolução.
Na época em que os anões foram criados, Melkor, uma espécie de deus das trevas, comandava. Por isso, Aulë criou os anões como pessoas fortes e resistentes. Eram “duros como pedra”, teimosos, leais em suas amizades e, também, firmes opositores de seus inimigos. Além disso, eram pessoas que suportavam o cansaço, fome e ferimentos com mais bravura do que os outros povos que falavam. Eram mortais, porém viviam mais do que os outros homens. Embora a crença popular dos povos dissessem que, ao morrer, os anões retornariam às pedras da qual foram feitos, não era essa sua crença. Eles criam que, ao morrer, seriam acolhidos por Aulë, o Criador, recebendo um lugar entre os Filhos do Final. E que auxiliariam na reconstrução de Arda depois da Última Batalha, uma espécie de Apocalipse [4].
Rei, líder e artífice
Richard Wagner foi um compositor, maestro e escritor alemão. Ele compôs um ciclo de quatro óperas denominado Der Ring des Nibelungen (O Anel de Nibelungo). Nesta composição, Wagner descreve a saga em torno do Anel Mágico, forjado por Alberich. Mago de poder único e artífice, rei e líder dos nibelungos, Alberich, o anão, cria o anel que confere poder ao que o possui.
O único problema é que aquele que possuísse o poder por meio do anel, forjado no ouro roubado do Reno, jamais possuiria o amor. Isso fez com que o próprio Alberich, o artífice do anel, a princípio, se tornasse um tirano. A sede de poder e domínio gerada pelo anel isolava quem os possuísse de qualquer empatia pelo próximo. Quando ele teve o anel tomado pelos deuses, Alberich reconhece o perigo do anel, lançando uma maldição, mais caracterizada como previsão, de que a desgraça acompanharia quem usasse tal objeto, e que a mágica se voltaria contra quem o utilizasse para benefício próprio.
Alberich é uma grande lição de que, sem o amor, qualquer fama, poder, domínio e reinado são maldições contra a vida daqueles que o possuem. Todos os meios de poder que, eventualmente, possamos dispor, devem ser usados para benefício de todos, não apenas nosso.
Nem sempre um anel: uma palavra, um gesto, um recurso, um contato, tudo isso pode ser meio de poder para ignorar, prejudicar ou transformar para melhor a vida de alguém.
Verdadeiro narniano
C.S. Lewis foi professor de literatura na Universidade de Oxford e Cambridge, além de teólogo britânico e amigo de J.R.R Tolkien. A sua principal obra de literatura fantástica é As Crônicas de Nárnia. Nárnia era uma espécie de mundo paralelo que se acessava por meios incomuns (anel, quadro e guarda-roupa). Ele trata de uma fantasia acerca da narrativa cristã da redenção.
No última crônica, chamada A Última Batalha, é descrito sobre a tomada de posição ao lado da justiça do “Anão” Poggin. Em todo o livro, muitos são os “anões” retratados como sujeitos maus. Nikabrik, por exemplo, tenta matar o príncipe Caspian, e, após isso, invocar a Feiticeira Branca, o que acarreta em sua morte. Mas esse retrato negativo é superado por Poggin, o único deles que se alia ao lado de Caspian e do Leão Rei, Aslam. Apesar de único, o fato dele optar pelo lado do bem torna o clima mais animado e iluminado. Ele é saudado e elogiado. Não há qualquer discriminação em sua diferença, pelo contrário, regozijo.
Após a descrição de Poggin, C.S. Lewis revela qual a real natureza dos anões narnianos: apesar de os menores em estatura, são as mais fortes e resistentes criaturas que existem, sendo até mesmo exímios caçadores.
Talvez o mais citado seja o “anão” Trumpkin. Companheiro do Príncipe Caspian, Trumpkin era líder dos verdadeiros narnianos. Obediente e fiel ao príncipe, ainda assim era cético quanto à existência do Rei Aslam, travando debates com o príncipe e outros personagens sobre esse tema. Ele não conseguia esconder o desprezo àqueles que sustentavam esperanças no Leão falante. As armas pareciam, em sua visão, mais eficientes do que as “histórias da carochinha”. De fato, ursos caiam diante das lanças de Trumpkin.
Quando Aslam finalmente apareceu, Trumplkin, junto com todos os companheiros de batalha ficam boquiabertos com a existência do Leão. Sua fidelidade ao Rei Caspian, mesmo diante de suas dúvidas, foi recompensada pelo grande prêmio de conhecer Aslam. [5]
O temido das florestas
Por fim, vale um resgate do famoso personagem do folclore brasileiro: Curupira! Sem dúvidas, Curupira é o mais poderoso integrante das florestas, disputando essa posição apenas com a Cuca. Uma informação importante, porém que poucas vezes é citada, é que o Curupira é um personagem com nanismo. Não apenas os pés para trás, mas sua baixa estatura somam-se às características dos cabelos ruivos (de fogo).
O Curupira é um guardião das florestas, tratados por alguns como um duende; no entanto, ele se enquadra mais como um espírito da floresta. Espírito guardião, tal como a cobra Boitatá. Curupira era profundamente temido pelos índios. Não por ser mau, mas por ser guardião das matas e animais, exigindo que, em qualquer caça ou extração de árvores e plantas, sua autorização fosse solicitada.
Os que mais deveriam temer, no entanto, o Curupira, eram os caçadores. Matar sem a necessidade de comer, certamente despertaria a fúria do personagem, que poderia ser violento, ou ardiloso, enganando os caçadores com suas pegadas para trás.
Como é possível notar, os personagens descritos como “Anões” são, sobretudo, pessoas respeitadas nos enredos que participam. Talvez esse resgate nos ajude, na vida real, a ver como pessoas “diferentes” são necessárias, importantes e que podem nos ensinar sobre a importância de aliados nas batalhas da vida!
Gustavo Arnoni é pai do Enoque, criança com Hipoplasia Cartilagem-Cabelo, marido de Jaquelina. Professor, formado em Pedagogia, Filosofia e Teologia.
Notas:
[1] Os integrantes com nanismo (Dwarves) da companhia eram Fili, Kíli, Oin, Glóin, Balin, Dwalin, Ori, Dori, Nori, Bifur, Bofur e Bombur.
[2] O relato mais detalhado do encontro da Companhia com Bibo Bolseiro pode ser encontrado no Capítulo I de O Hobbit. TOLKIEN, J.R.R. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
[3] Lembrando que na literatura fantástica toda “raça” especial (magos, elfos, anões etc) é criada antes de se procriar.
[4] A história completa da criação dos Sete Anões pode ser lida no Capítulo II de O Silmarillion. TOLKIEN, J.R.R. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
[5] LEWIS, C.S. As crônicas de Nárnia. Volume único. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
[6] Leia mais sobre os personagens do Folclore Brasileiro em: FRANCHINI, A.S. As 100 melhores lendas do folclore brasileiro.Porto Alegre/RS: LPM, 2011.